sábado, novembro 02, 2013

A outra face da raiva

O Patiework de hoje é sobre a raiva. O filme escolhido para ilustrar é "A Outra Face da Raiva".

Sugiro que você assista o filme primeiro porque comento o filme todo, inclusive o final.
Versao em português.



As palestras do Pathwork que vão guiar nossa reflexão sobre a raiva sao: Nr. 102 - Os Sete Pecados Cardeais; Nr. 140 - Ligaçao ao Prazer Negativo como Origem da Dor; Nr. 154 A Pulsaçao da Consciência; Nr. 155 Medo do Eu, Dar e Receber; e, os Capitulos 6 (A procura da nossa turma) e 12  (Os limites da raiva e do perdão) do livro "Mulheres que Correm com os Lobos".

O filme "A Outra Face da Raiva" é a historia de uma mulher amargurada e cheia de furia que foi abandonada pelo marido. Passa os dias deprimida, bebendo e procurando informaçoes sobre a Suécia, pais de origem da ex-secretaria do marido, com quem ela acredita que ele tenha fugido.
Ela é mae de quatro adolescentes que estao se tornando mulheres, descobrindo a sexualidade, o casamento, a independência, enfim, tornando-se adultas. Como é uma mãe ferida, prostrada (Capitulo 6), as experiências das filhas são lenha que aumentam o fogaréu de sua furia.

Se considerarmos cada um dos personagens do filme como um componente pertencente à psique de uma unica pessoa, teremos  5 mulheres, entre 15 e 50 anos, vivenciando diferentes etapas da vida. A menina de 15 anos representando a criança interior; a mãe, o ego furioso; e o vizinho que interage com todas elas, a força masculina (o animus).

O filme é narrado através dos olhos da criança interior, a menina de 15 anos, que diz este texto no final do filme:

"A raiva pode incendiar e bloquear o nosso caminho. Mas é real, a furia. Mesmo quando nao é, pode mudar você, transformar você, moldar você, fazer de você algo que você nao é.
Assim, a outra face da raiva é a pessoa que você se torna. E se Deus quiser, alguém (a sua criança interior) acorda e percebe que nao tem medo da sua jornada. Alguém que sabe que a verdade, na melhor das hipoteses, é uma historia parcialmente contada e que a raiva, assim como o crescimento, vem em jatos e, em seu caminho, deixa uma nova possibilidade de aceitaçao e a promessa de calma."

Quem acorda? A nossa criança interior, que nos leva pela mão para a floresta interna, o inconsciente, para enfrentar a raiva e dissolvê-la. Clarissa Pinkola aconselha, no livro Mulheres que Correm com Lobos: "Na maioria dos casos, parece ser melhor ir quando se é chamada (ou empurrada), quando se tem alguma impressão de ser capaz de ter agilidade e elasticidade, do que hesitar, resistir, contemporizar, até que as forças psíquicas venham agarrá-la e arrastá-la, ferida e sangrando, por todo o processo de qualquer jeito. Às vezes, não se tem a opção de manter o equilíbrio; mas, quando ela existe, consome menos energia aceitá-la" (pagina 583).

Na minha infância vivenciei muitas cenas de hostilidade e raiva ativa (direcionada para os outros) e passiva (direcionada para si num processo autodestrutivo) que foram deixando marcas profundas e uma aprendizagem da auto-afirmaçao através da agressividade destrutiva, a distorção do poder. O ensinamento de Jesus "ofereça a outra face" foi interpretado pelas mulheres à minha volta como "fique calada diante da injustiça ou da desconsideração". Tive que caminhar com meus proprios pés para descobrir que a poderosa resistência passiva que Gandhi ensinou multidões a fazer é bem diferente do fato de uma pessoa ser incentivada ou forçada a se calar para poder sobreviver a um abuso ou situação insuportável na família, na comunidade ou no mundo. Nesse caso, a pessoa perde o contato com a intuição, e seu silêncio não é de serenidade, mas simboliza uma enorme defesa para não sofrer mais violência. É um erro acreditar que, só porque a pessoa está calada, ela aprova a vida que leva. Assim, a pessoa que não compreende como lidar com a raiva e silencia esta praticando uma falsa entrega e resistindo ao mal, criando uma espiral descendente onde os niveis de furia vão aumentando cada vez mais.

Em 2008, vivenciei a experiência da imigraçao do Brasil para a Guiana francesa e o apice da minha colera ao acreditar que nao tinha co-criado aquela realidade em minha vida. Durante os três anos que vivi na Guiana Francesa tive a felicidade de estudar o Pathwork, perceber a guidança pelo Caminho, compreender a raiva, direciona-la para o autoconhecimento e para a construçao objetiva das minhas escolhas. Muito grata aos terapeutas do Pathwork Helo Knoedt e Gustavo Monteiro; e os terapeutas da criança interior, Jean-Jacques e Richard Verboomen, com quem tenho aprendido a colocar os bichos pra fora em segurança.

Compartilho com vocês o texto da Helo que foi minha lanterna na selva escura em 2009: "Raiva é uma emoção normal, saudável, construtiva. É uma espécie de defesa contra situações que ferem a nossa dignidade. Quando ficamos frustrados, decepcionados, humilhados, quando somos feridos e não suportamos estes sentimentos tão vulneráveis, costumamos usar a raiva para nos defender. Mas é bom que fique claro que nos defendemos principalmente contra a emoção que não suportamos e que antecede à raiva.
A raiva se torna negativa quando a pessoa tem medo dela e se esforça para evitá-la. Porque quando reprimida a raiva sai do controle ou fica dissimulada, escondida por baixo de uma bondade forçada. A natureza da raiva vai da leve irritação até a fúria e crueldade, é sempre acompanhada de mudanças fisiológicas (aumento da pressão arterial, dos níveis hormonais (especialmente adrenalina e noradrenalina), aceleração dos batimentos cardíacos, força muscular, dilatação das pupilas) e psicológicas (a pessoa fica pronta para lutar ou fugir). Raiva é orgânica, é uma resposta adaptativa às ameaças.
A manifestação instintiva, natural e saudável da raiva é agressividade direcionada para fora. Raiva inspira força, comportamento assertivo e agressivo quando se trata de defesa contra ameaça. É extremamente necessária à sobrevivência. No entanto, raiva não é provocada somente por motivos externos; acontece também de ser provocada por motivos internos, como ativação de memória traumática, preocupações, inibição.
Todos guardamos na nossa memória sentimentos de muita vulnerabilidade que vivemos na infância, e isso não depende de termos tido pais bons ou não tão bons. Isso é um fenômeno humano – 14 anos (ou mais) de submissão a uma autoridade nos deixa muito vulneráveis.
Aprendemos, desde cedo, a não jogar raiva para fora, porque as leis, as normas sociais e o senso comum limitam até onde ela pode ir.
Existem três maneiras de lidar com a raiva: Expressar / Suprimir / Acolher.
EXPRESSAR - a raiva expressada é assertividade. Para que não seja destrutiva, é importante que a pessoa tenha consciência, “olhe” para a raiva. Olhe para a raiva e procure reconhecer qual a necessidades frustrada por trás dela para que possa dizer com clareza qual a sua necessidade, respeitando o outro.
SUPRIMIR - a raiva suprimida torna o sujeito passivo/agressivo e pode levar à expressão patológica (síndrome do descontrole episódico), ao cinismo, hostilidade, dissimulação. Raiva suprimida não significa que a pessoa não seja agressiva. Pelo contrário, justamente por tentar controlar compulsivamente a raiva, esta termina saindo de forma descontrolada e até destrutiva. ACOLHER - as técnicas utilizadas para o controle da raiva devem ajudar a pessoa a controlar o comportamento externo sem reprimir a emoção. A maneira mais eficaz para controlar sem reprimir é acolher a raiva, o que é feito através da auto-observação das próprias reações aos eventos (internos e externos) e da respiração consciente.
Com a prática isto leva o sujeito a assumir responsabilidade pelo que sente, ao invés de atribuir culpa ao outro. È importantíssimo trabalhar a respiração (respirar com ênfase na expiração), buscar controlar os batimentos cardíacos e acalmar a reação às emoções e sentimentos. Este método é chamado de ACALMAR A RAIVA." (Helo Knoedt)

O capitulo 12, do livro "Mulheres que Correm com os Lobos", é um verdadeiro tratado sobre a cura da psique furiosa. Clarissa Pinkola esclarece que "há uma época na nossa vida, geralmente na metade da vida, em que precisamos tomar uma decisão — possivelmente a decisão psíquica mais importante para nossa vida futura — a respeito de nos tomarmos amargas ou não. As mulheres costumam chegar a esse estágio pouco antes ou pouco depois dos quarenta anos. Elas estão num ponto em que estão "cheias até a raiz dos cabelos", em que "para elas, chega", em que isso foi a gota d'água" e em que "estão irritadas a ponto de explodir". Seus sonhos de quando tinham vinte anos podem estar jogados de qualquer jeito. Pode haver corações partidos, casamentos desfeitos, promessas esquecidas. Qualquer um que viva muito acumula lixo. Não há como evitá-lo. No entanto, se a mulher quiser voltar à sua natureza instintiva em vez de mergulhar numa atitude amarga, ela renascerá, revitalizada. Um dia chega a hora de perdoar a fim de liberar a psique para que ela volte a um estado normal de calma e paz.
Quando a mulher enfrenta dificuldades para se livrar da raiva ou da fúria, muitas vezes é porque ela está usando a raiva para ganhar forças. Embora a princípio essa possa ter sido uma decisão sábia, com o tempo ela precisa ter cuidado, pois a raiva constante é um fogo que queima sua própria energia vital. Encontrar-se nesse estado é como voar pela vida com "o pé na tábua"; como tentar levar uma vida equilibrada com o pé no acelerador até o fundo. O ímpeto da fúria não deve ser considerado um substituto da vida cheia de paixão. Não é a vida na sua melhor forma. Trata-se de uma defesa cuja manutenção é muito cara, depois de passada a necessidade da sua proteção. Após algum tempo, ela arde incessantemente, polui nossas idéias com sua fumaça negra e prejudica outras formas de visão e de percepção.
Por isso, a limpeza da fúria residual precisa se tomar um ritual de higiene periódica, um ritual que nos libera, pois carregar a raiva antiga além do ponto de sua utilidade equivale a carregar uma ansiedade constante, mesmo que inconsciente. Às vezes as pessoas se confundem e pensam que estar presa a uma raiva ultrapassada significa queixas e enfurecimentos, acessos de raiva e de atirar coisas. Na maioria dos casos não é assim que funciona. Estar presa significa estar cansada o tempo todo, ter uma grossa camada de cinismo, destruir a esperança, frustrar o novo, o promissor. Significa ter medo de perder antes de abrir a boca. Significa chegar ao ponto de ebulição por dentro, deixando transparecer ou não. Significa amargos silêncios defensivos. Significa sentir-se desamparada. Existe, porém, uma saída, e é através do perdão.
"Ora, através do perdão?" você dirá num tom de repúdio. Pense no seguinte: muitas pessoas têm dificuldades com o perdão porque lhes ensinaram que ele é um ato único a ser concluído de uma vez. Isso não é correio. O perdão tem muitas camadas, muitas estações. Na nossa cultura existe a idéia de que o perdão é absoluto. Tudo ou nada. Também nos ensinam que perdoar significa fechar os olhos, agir como se algo não tivesse ocorrido. Isso também não é verdade. A mulher que conseguir atingir 95% de perdão de alguém ou de algum acontecimento trágico e danoso está praticamente qualificada para a beatificação, se não para a santidade. Se ela sentir uns 75% de perdão e 25% de "não sei se vou um dia conseguir perdoar totalmente, e nem sei se quero isso", estará mais próxima do normal. No entanto, 60% de perdão acompanhados de 40% de "não sei, não tenho certeza e ainda estou pensando nisso" já são uma atitude decididamente satisfatória. Um nível de perdão de 50% ou menos pode ser considerado como esforço em andamento. Menos de 10%? Ou você está apenas começando, ou ainda não está se esforçando.

 Os quatro estágios do perdão:
1. Deixar passar — deixar a questão em paz, é bom deixar passar algum tempo, deixar de pensar provisoriamente na pessoa ou no acontecimento, tirar umas férias do assunto. Isso ajuda a evitar que fiquemos exaustas, permite que nos fortaleçamos.
 2. Controlar-se — significa ter paciência, resistir, canalizar a emoção. Esses são medicamentos poderosos. Faça tanto quanto puder. Esse é um regime de purificação. Você não precisa fazer tudo; você pode escolher um aspecto, como o da paciência, e praticá-lo. Você pode se abster de palavras, de resmungos punitivos, de agir de modo hostil, ressentido. Ao evitar punições desnecessárias, você estará reforçando a integridade da alma e da ação. Controlar-se é praticar a generosidade, permitindo, assim, que a grande natureza compassiva participe de questões que anteriormente geravam emoções que iam desde a ínfima irritação até a fúria.
3. Esquecer — Esquecer não quer dizer entorpecer o cérebro. O esquecimento consciente consiste em deixar de lado o acontecimento, não insistir para que ele permaneça no primeiro plano, mas permitir que ele seja relegado ao plano de fundo ou mesmo que saia do palco.
4. Perdoar — o abandono da dívida. É uma decisão consciente de deixar de abrigar ressentimento, o que inclui o perdão da ofensa e a desistência da determinação de retaliar. É você quem decide quando perdoar e o ritual a ser usado para assinalar esse evento. É você quem resolve qual é a dívida que você agora afirma não precisar mais ser paga. Isso não quer dizer que você deva enfiar a cabeça no ninho da cobra, mas, sim, ser sensível a partir de uma postura de compaixão, segurança e preparo. O perdão é onde vão culminar toda a abstenção, o controle e o esquecimento. Não significa abdicar da própria proteção, mas da própria frieza. É melhor para a psique da alma restringir ao máximo o tempo de exposição às pessoas que são difíceis para você do que agir como um robô insensível.

Como a mulher sabe que perdoou? Você passa a sentir tristeza a respeito da circunstância, em vez de raiva. Você passa a sentir pena da pessoa em vez de irritação. Você passa a não se lembrar de mais nada a dizer a respeito daquilo tudo. Você compreende o sofrimento que provocou a ofensa. Você prefere se manter fora daquele meio. Você não espera por nada. Você não quer nada. Não há no seu tornozelo nenhuma armadilha de laço que se estende desde lá longe até aqui. Você está livre para ir e vir. Pode ser que tudo não tenha acabado em “viveram felizes para sempre”, mas sem a menor dúvida existe de hoje em diante um novo "Era uma vez" à sua espera." (Mulheres que Correm com os Lobos. Clarissa Pinkola Estés, pag 456)

A palestra 155 do Pathwork esclarece que, quando "a força positiva é deformada, perturbada, transformada, distorcida, tornando-se assim negativa. Não é uma força diferente que começa a existir. A raiva não é uma emoção ou corrente de energia nova. Ela é feita da mesma substância original que o amor, e pode voltar a se transformar em amor, se permitirmos."

No filme, esta transição do odio para o amor é vivenciada quando a personagem descobre que a traição do marido era uma ilusão criada pela sua mente e emoçoões doentes. Seu marido estava morto no quintal de sua casa.
O enterro do marido simboliza o enterro das velhas emoções para que a personagem se permita vivenciar um outro "Era uma vez".


Para ler Mulheres que Correm com Lobos, clique aqui.

Para baixar as palestras do Pathwork citadas, clique aqui.

* Patrícia Nascimento Delorme, compreendendo e agradecendo à mestra raiva "Arigato zaichö" (Muito Grata, Ilusão).