quarta-feira, agosto 19, 2009

Se Eu Quiser Falar Com Deus.


Foto: Pierre Yves Refalo

Toró nr. 59. Matoury-Guiana Francesa, 18 de agosto de 2009.

Fuçando na internet, encontrei essa belissima participaçao do Gilberto Gil no programa SR. Brasil, do Rolando Boldrin, na TV Cultura. Para ver no Youtube, clique aqui.

Quanto a mim, so posso agradecer a Deus por ter nascido em terras onde se vive tamanha liberdade espiritual e poesia.


SE EU QUISER FALAR COM DEUS
Gilberto Gil
1980

Se eu quiser falar com Deus
Tenho que ficar a sós
Tenho que apagar a luz
Tenho que calar a voz
Tenho que encontrar a paz
Tenho que folgar os nós
Dos sapatos, da gravata
Dos desejos, dos receios
Tenho que esquecer a data
Tenho que perder a conta
Tenho que ter mãos vazias
Ter a alma e o corpo nus
Se eu quiser falar com Deus
Tenho que aceitar a dor
Tenho que comer o pão
Que o diabo amassou
Tenho que virar um cão
Tenho que lamber o chão
Dos palácios, dos castelos
Suntuosos do meu sonho
Tenho que me ver tristonho
Tenho que me achar medonho
E apesar de um mal tamanho
Alegrar meu coração
Se eu quiser falar com Deus
Tenho que me aventurar
Tenho que subir aos céus
Sem cordas pra segurar
Tenho que dizer adeus
Dar as costas, caminhar
Decidido, pela estrada
Que ao findar vai dar em nada
Nada, nada, nada, nada
Nada, nada, nada, nada
Nada, nada, nada, nada
Do que eu pensava encontrar

Narraçao do Boldrin baseado no texto de Guimaraes Rosa:

"Quanto mais testo, penso e explico é que todo mundo é louco.
Todo mundo é louco. Eu, a senhora, o senhor. Todo mundo é louco.
é por isso que se carece muito de religiao. Pra desdoidar, pra desendoidecer. Reza é que cura da loucura, no geral. Muita religiao, seu moço.
Eu cá, não perco ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo água de tudo quanto é rio… Uma só, para mim é pouca, talvez não me chegue. Rezo cristão, católico, embrenho a certo; e aceito as preces de compadre meu Quelemém, e a doutrina dele é do Kardec. Mas, quando posso, vou no Mindubim, onde um Matias é crente metodista; a gente se acusa de pecador, lê alto a Bíblia, e ora, ora, cantando hinos belos deles. Tudo isso me aquieta. Tudo isso me sustenta."

Se eu quiser falar com Deus
Tenho que me aventurar
Tenho que subir aos céus
Sem cordas pra segurar
Tenho que dizer adeus
Dar as costas, caminhar
Decidido, pela estrada
Que ao findar vai dar em nada
Nada, nada, nada, nada
Nada, nada, nada, nada
Nada, nada, nada, nada
Do que eu pensava encontrar

Curiosidade sobre a cançao escrita pelo Gil:
"O Roberto (Carlos) me pediu uma canção.
Do que eu vou falar? Ele é tão religioso...
E se eu quiser falar de Deus? E se eu quiser falar de falar com Deus?' Com esses pensamentos e inquirições feitas durante uma sesta, dei início a uma exaustiva enumeração: 'Se eu quiser falar com Deus, tenho que isso, que aquilo, que aquilo outro'. E saí. À noite voltei e organizei as frases em três estrofes.
O que chegou a mim como tendo sido a reação dele, Roberto Carlos, foi que ele disse que aquela não era a idéia de Deus que ele tem. 'O Deus desconhecido'. Ali, a configuração não é a de um Deus nítido, com um perfil claro, definido. A canção (mais filosofal, nesse sentido, do que religiosa) não é necessariamente sobre um Deus, mas sobre a realidade última; o vazio de Deus: o vazio-Deus."
Gilberto Gil
http://www.gilbertogil.com.br/sec_discografia_obra.php?id=260


* Patrícia Nascimento Delorme, 37, mãe do Luka, terapeuta de reiki e jornalista, lambendo o chao dos palacios e castelos suntuosos do meu sonho. Seu e-mail: patiedelorme@gmail.com

quarta-feira, agosto 05, 2009

“A tua lucidez não te deixa ver…”


Toró nr. 58. Matoury-Guiana Francesa, 05 de agosto de 2009.

Assisti o documentario "Estamira", do genial Marcos Prado, aqui no meu exilio franco-amazonico.
A edição e fotografia são força e poesia. A musica do Décio Rocha é pura emoção.

Depois de chorar uma semana pela Estamira, por mim e pelas Estamiras do mundo, escrevi para o Marcos Prado. Precisava saber como ela estava. E ele me respondeu:

"Oi Patrícia,
Estamira vive numa casa nova que construímos para ela, no mesmo lugar de sempre. Ela recebe uma mesada para a ajuda de custo e não mais freqüenta o Lixão. A saúde dela está bem debilitada, mas a vida segue em frente. Ela ainda toma remédios para os distúrbios mentais e oscila entre a lucidez e a "inlucidesi".
Boa sorte e um abraço,
Marcos Prado"

Chorei por tudo o que Estamira viveu.
Chorei por tudo o que ela nao viveu.
Chorei por sua força e fé.
Chorei pela minha covardia.
Numa cena marcante do filme, Estamira revela: "Tudo que é imaginado tem, existe, é."
Estamira sabe disso.
Eu li isso .
Estamira vive isso.
Eu li isso.

Em outra cena, Estamira desabafa:
"A vida é dura, dura, dura.
Por mais que a gente peleja, que a gente quer bem, que a gente quer O bem.
Mas... fica destraviado."

Estamira sabe disso. E eu também.

O fato é que senti tamanho respeito e amor pela Estamira que me preencheu o coraçao de ternura.
Queria ter o poder de tirar suas dores d'alma e do corpo com a mao.
Queria lavar seus cabelos, pentea-los. Abraça-la.
Até ela se sentir amada e amparada.
Até eu me sentir amada e amparada.

Talvez o amor que eu sinta pela Estamira seja saudades da mãe e da vozinha.
Talvez nao.

* Patrícia Nascimento Delorme, 37, mãe do Luka, terapeuta de reiki e jornalista, aprendendo com a lucidez e a "inlucidesi" da Estamira. Seu e-mail: patiedelorme@gmail.com


"ESTAMIRA é a história de uma mulher de 63 anos que sofre de distúrbios mentais e que durante 20 anos viveu e trabalhou no aterro sanitário de Jardim Gramacho.
Vencedor de 33 prêmios nacionais e internacionais nos principais festivais de cinema, sucesso absoluto de critica e documentário de maior público nos cinemas brasileiros em 2006, ESTAMIRA levanta questões de interesse global como o destino do lixo produzido pelos habitantes de uma metrópole e os subterfúgios que a mente humana encontra para superar uma realidade insuportável de ser vivida.
Dona ESTAMIRA vive em função de sua missão: "revelar e cobrar a verdade dos homens". Do lixo da civilização ela supera sua condição miserável e coloca em questão valores fundamentais, muitas vezes esquecidos pela sociedade.
"A insanidade de Estamira é uma linguagem de defesa diante de um mundo mais louco que ela. A sua loucura e a narração de uma sabedoria torta, de uma anomalia que salva de uma realidade, esta sim, terrivelmente insana" - Arnaldo Jabor, Cineasta e Jornalista

Pra mim, fica claro que Estamira rompeu com Deus criado à imagem e semelhança do homem para seguir solitaria o caminho dos misticos, aquele cheio de Verdade e pedras.

Assim falou Estamira:

"EU SOU A BEIRA DO MUNDO, EU TÔ LÁ, TÔ CÁ, TÔ EM TUDO QUANTO É LUGAR."

"DEUS? QUEM FEZ DEUS FOI OS HOMENS."

"A CULPA E DO HIPÓCRITA, MENTIROSO, ESPERTO AO CONTRÁRIO, QUE JOGA A PEDRA E ESCONDE A MÃO."

BONITO
"Bonito é o que se fez e o que se faz.
Feio é o que se fez e o que se faz."

INOCENTES
“A minha missão é ensinar o que eles não sabem: os inocentes. Aliás, não tem mais inocente. Tem é esperto-ao-contrário. Eu ja tive dó dos escravos. Hoje nao tenho mais não”.

TERRA
"A Terra disse, ela falava, agora que ela já tá morta, ela disse que então ela não seria testemunha de nada. Olha o quê que aconteceu com ela. Eu fiquei de mal com ela uma porção de tempo, e falei pra ela que até que ela provasse o contrário. Ela me provou o contrário, a Terra. Ela me provou o contrário porque ela é indefesa. A Terra é indefesa.
A minha carne, o sangue, é indefesa, como a Terra; mas eu, a minha áurea não é indefesa não. Se queimar os espaço todinho, e eu tô no meio, pode queimar, eu tô no meio, invisível. Se queimar meu sentimento, minha carne, meu sangue, se for pra o bem, se for pra verdade, pra o bem, pela lucidez de todos os seres, pra mim pode ser agora, nesse segundo, e eu agradeço ainda."

DEUS
"Que Deus é esse? Que Jesus é esse, que só fala em guerra e não sei o quê?! Não é ele que é o próprio trocadilo? Só pra otário, pra esperto ao contrário, bobado, bestalhado. Quem já teve medo de dizer a verdade, largou de morrer? Largou? Quem andou com Deus dia e noite, noite e dia na boca ainda mais com os deboches, largou de morrer? Quem fez o que ele mandou, o que o da quadrilha dele manda, largou de morrer? Largou de passar fome? Largou de miséria? Ah, não dá! Nesse Deus eu nao acredito. Pode picar a minha carne todinha que eu nao acredito."

TRABALHO
"Foi combinado alimentai-vos o corpo com o suor do próprio rosto, não foi com sacrifício. Sacrifício é uma coisa, agora, trabalhar é outra coisa. Absoluto. Absoluto. Eu, Estamira, que vos digo ao mundo inteiro, a todos, trabalhar, não sacrificar. Os trabalhadores do lixo são escravos disfarçados de libertos."




Para ver o filme, clique aqui.

Para conhecer o trabalho: http://www.estamira.com.br/