terça-feira, julho 29, 2008

Toró de Parpite nr. 26. A Cigarra e a Formiga.




Toró nr. 26. Matoury-Guiana Francesa. Estação da Chuva! ! ! + - 30 °C ! Caloooooor e úmido!

Olá amigas e amigos,

Recebi o e-mail de uma estudante de educação física que está desenvolvendo um trabalho sobre a Companhia de Dança Ginga, do Mato Grosso do Sul. Como fui bailarina do grupo por dois anos, ela me enviou umas perguntinhas pra eu responder. Compartilho com vocês esse trecho da minha vida e pago a promessa que fiz no Toró nr. 01, de que escreveria sobre a "paz" entre as dimensoes cigarra e formiga em minha vida.



Dançando a coreografia AFRO no centenario da libertaçao dos escravos.



1º - Por que entrou na Cia. de Dança Ginga?
A dança é a forma de expressão que me permite a conexão com as forças mais divinas que há em mim. Apesar disso, fiz parte do « Grupo Ginga » muito mais por compaixão do diretor Chico Neller do que pelo conhecimento que tinha. Na época, vinha de uma família desestruturada e sem dinheiro. Uma irmã de 13 anos grávida e minha mãe com um bebê do padrasto que não assumia as responsabilidades. Sem recursos, nunca tive chance de frequentar uma academia. Assim, antes de me tornar bailarina, ia aos ensaios do Ginga e ficava la no canto da sala, vendo-os com um « olhar de cachorro pidão ». Na audição de 1988, para selecionar dez novos bailarinos, o Chico Neller me escolheu, por misericórdia, entre os muitos participantes. Uma felicidade sem fim! Tenho profundo sentimento de gratidão ao Chico Neller por ter aberto essa porta em minha vida e à Luciane Mamoré, uma das bailarinas e amiga, por ter insistido para que eu terminasse a audição.



A coreografia "Raizes" com polca paraguaia, chamamé, Tetê Espindola e Almir Sater. Coraçao batia forte.



2º - Como foi a experiência vivida na Cia.? Quanto tempo dançou nesta ?
Fiz parte da construção da Companhia entre os anos de 1988 e 1990. Além de me permitir adentrar o universo da Dança, o Ginga foi o meu porto seguro em meio ao caos familiar. Me afastou de drogas, permitiu que eu desenvolvesse alguma auto-estima, senso de companheirismo, de lutar por um ideal juntamente a um grupo. Também foi com a Companhia que eu desenvolvi a disciplina que me permitiu voltar a estudar, me tornar jornalista e viajar pelo mundo, afinal, os ensaios eram sagrados, de segunda a segunda !!!! Haja disciplina e perseverança !



3º - Por que sentiu a necessidade de sair da Ginga?
A necessidade de sair do Ginga surgiu de um caldo cheio de ingredientes :

O primeiro deles é a indiferença do Brasil pela arte e pelos artistas. Nós somos uma nação onde a dimensão da cigarra é mais desenvolvida que a dimensão da formiga (a criatividade se sobrepõe à disciplina), resultando num país abundante em artistas e criatividade, mas poucas condições para abarcar a todos e todas que têm a ousadia de percorrer o caminho da arte. Apesar disso, ou talvez, por causa disso, o Brasil não dá nenhum valor e incentivo aos que têm a coragem de oferecer a sua vida à dimensão cigarra. Sendo assim, tinha muito medo de morrer de fome e frio, fazendo alusão à história infantil e, fui sufocando a minha dimensão cigarra.



O "patrocinio" da Fundaçao Barbosa Rodrigues. Piada! Cada bailarino tirava do proprio bolso ou do bolso dos pais o seu patrocinio, além das doaçoes que nos eram feitas nos pedagios da avenida Afonso Pena.


O segundo ingrediente é uma continuação do primeiro: minha família e amigos não viam a dança como profissão e a pressão se tornou insuportável para que eu voltasse a ter uma vida « normal », com horário de trabalho de oito às dezoito, carteira assinada e cartão de ponto. São pessoas que não compreenderam que a profissão de bailarina exige – e muito ! – o desenvolvimento da dimensão formiga de disciplina e trabalho duro. São horas de aulas, ensaios, atenção com os compromissos assumidos com apresentações. Exigiam que eu deixasse a « vida de irresponsável » , como eu costumava escutar…

O terceiro ingrediente foi a crença de que éramos uma família. Mas como todas as famílias, o Ginga era um ponto de apoio, mas também, era farto em divergências, cobranças injustas e desigualdades de tratamento entre os seus, o que tornava a convivência, muitas vezes, dolorosa.


A familia Ginga na festa de natal de 1989.


O quarto fator era a crença de que éramos um grupo profissional. A partir daí, surgia a cobrança, por parte da Companhia, que os bailarinos tivessem a responsabilidade e atuação de profissionais, apesar da maioria ser formada por adolescentes menores de idade, sem maturidade e apoio para isso. A Cia. Ginga tinha o bônus de ser o único grupo de dança profissional do Estado de Mato Grosso do Sul, mas nunca assumiu o ônus desse « status » com seus bailarinos. Pelo menos no período em que fui integrante, nunca recebi financeiramente pelas apresentações, assim como, as viagens para Festivais eram todas custeadas pelos próprios bailarinos, uma vez que a Cia. não tinha recursos para tais despezas. "Além disso, tinhamos uma rotina de ensaios e vida que prejudica a saúde de qualquer ser humano: dietas malucas pra emagrecer, horários exaustivos de ensaio (e até de madrugada, fora do período em que o corpo rende) ,a falta de sono regular (cheguei a buscar ajuda com medicamentos pra me manter acordada durante o dia), o cansaço das viagens (ida - apresentação - volta, tudo no mesmo dia). Enfim, não sei se os bailarinos de hoje têm, mas nós não tínhamos nenhum tipo de orientação nutricional, fisiologia do corpo, anatomia ou coisa parecida... Não tínhamos essa consciência e nosso comprometimento era o de dançar e dançar e dançar, mais por prazer do que por qualquer outra coisa, mas hoje, na condição de companhia profissional, este tipo de acompanhamento é imprescindível para evitar os danos ao corpo e à saúde." (trecho entre aspas: colaboraçao da amiga Hilma Wielewski)

E, por último, e o mais importante deles: a divergência entre o caminho que a Companhia escolheu se expressar, em 1990, e aquilo que eu sentia quando dançava. Para mim, as coreografias se tornaram um apanhado de números para decorar. Nao existia emoção. Eu não compreendia mais o que dançava. Não entrava mais em sintonia com aquela força que me movia. Estava dançando uma mensagem que era forte para alguém mas que não me dizia absolutamente nada. A força, a espontaneidade e autenticidade de coreografias como o "Afro" e "Raizes" tinham desaparecido! Alias, as unicas duas coreografias da época em que dancei no Ginga que valem a pena serem citadas...


O inicio da nova fase do Ginga: contemporâneo e moderno.


Assim, no dia 20 de março de 1990, minha alma bifurcada entre as dimensões cigarra e formiga sufoca a cigarra e oficializa a saída do grupo numa conversa curta com o diretor Chico Neller.
Ele me confidencia então, pela primeira vez, o que minha auto-estima estraçalhada não podia ver: que eu era uma promessa para a Dança e para o Ginga. E me diz, entre um cigarro e outro, que muitos escolhiam a Dança para viver mas que a Dança havia me escolhido e que eu deveria valorizar essa escolha.


A melancolia da luta entre a cigarra e a formiga.


Ainda assim, rompi com a Dança. E já que não poderia ser uma bailarina no Grupo Ginga, não me permiti dançar mais. E durante algum tempo não dancei até mesmo em festas. Foram dez anos de rompimento com a dança até que no ano 2000, viajei para estudar na Inglaterra e precisava de dinheiro para ir à India. Lendo o jornal, notei uma publicidade convocando bailarinas brasileiras para uma audição. Participei dos testes que selecionavam bailarinas para dançar em Cingapura durante as festas do fim do milênio e fui aprovada!

Parti para Cingapura com a viagem paga, um salario que possibilitou que eu morasse na India durante sete meses e mais que isso, curei a minha dor e fiz as pazes com a Dança e com essa força que me move. (Veja Toró de Parpite nr. 01).

4º-O que faz atualmente, continua com a dança ou não?
Depois da saída do Ginga, voltei a estudar, me formei em Jornalismo e Fotografia em 1997. Trabalhei como repórter e apresentadora do noticiário TJ MS, do SBT. No mesmo ano, viajei para a Suíça onde trabalhei na equipe da assessoria de imprensa da Marcha Global Contra o Trabalho Infantil, organização que luta contra a exploração da mão-de-obra infantil em todo o mundo. Conheci o brasileiro Henrique Pereira, diretor do grupo de dança Samba Brasil, que me convidou pra dançar na companhia. Alí, sim, conheci uma verdadeira família formada por brasileiros auto-exilados em busca de oportunidades na Suíça. Com o grupo, vivi a solidariedade fora do país e conheci toda a Suíça dançando (Muito grata, Henrique!).

Em 1999, fui estudar na Inglaterra e trabalhei numa companhia de dança que viajava por toda a Europa e Asia. No ano 2000, fui para India trabalhar como assessora de imprensa do Secretariado Internacional da Marcha Global Contra o Trabalho Infantil. E retornei ao Brasil, no ano 2001, para fundar a primeira agência de jornalismo especializado em direitos da infância do MS, a Girassolidário (http://www.girassolidario.org.br/). A organização passou a fazer parte da Rede Nacional, com onze agências em todo o Brasil e da Rede na América Latina, com agências em sete diferentes países da América do Sul. No ano 2004, Deixei a ONG sob a responsabilidade do parceiro Stephan Hoffman, com quem fundei a ONG, para acompanhar meu marido até Brasília, onde passamos a viver. Tivemos nosso primeiro filho e trabalhei em um programa de rádio especializado em Educação, o Escola Brasil, retransmitido por mais de 600 empresas de comunicação em todo o Brasil (http://www.escolabrasil.org.br/ ).
Em 2008, nos mudamos para a Guiana Francesa onde agora pretendo dar aulas de fotografias para crianças indígenas.

Apesar da dor na saída do Grupo, o que ficou da experiência são as boas lembranças dos ensaios, das viagens, das amizades que vão pra eternidade, da auto-estima conquistada e, da disciplina e perseverança aprendidas com a Companhia Ginga !
Continuo dançando por puro prazer ! Do Chamamé à Dança do Ventre !


Foi com a professora de dança do ventre, Luciana Lambert, que iniciei minha cura. Um workshop de fim de semana em Campo Grande, em 1995. Chorei a aula toda...

Ela não é maravilhosa? http://www.lucianalambert.com.br/


Beijins saltitantes
Patie

* Patricia Nascimento Delorme, 36, jornalista e mãe do Luka, em paz com a cigarra e a formiga. Seu e-mail: patienascimento@hotmail.com

2 comentários:

  1. Olá Patrícia,

    Talvez por eu ser a pessoa mais desligada do mundo, sempre a conheci como jornalista. Nunca soube dessa história tão bonita, você dançarina, você Ginga, você Cigarra.

    Parabéns.

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  2. Anônimo7/8/08 19:46

    Querida Patrícia,

    É uma honra para mim a sua lembrança e mais ainda: saber que eu interferi no seu processo.
    é um retorno maravilhoso deste meu trabalho que realmente é difícil mas que amo muito, com as mulheres e a dança!!! Bárbara sua história! Parabéns!


    Obrigada querida!
    Beijo,
    Luciana

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