sexta-feira, maio 01, 2009

Toró de Parpite nr 48. Diane Arbus, os marginais e a dor.


Diane Arbus, fotografa judia americana , retratada pelo marido em 1949.

Toró nr 48. Matoury-Guiana Francesa, 30 de abril de 2009.

Ha dezessete anos tenho o mesmo sonho de vez em quando. Estou lavando as lentes de contato que sao do tamanho de minhas maos. Dobro-as em muitas partes, amasso e tento enfia-las nos olhos. A agonia de nao enxergar o mundo, a mim mesma, aos outros e a propria lente me atordoa. Estou em meio à nevoa desfocada tipica que envolve os miopes. Quando termino de dobrar minhas lentes e tento coloca-las à força dentro dos olhos, elas se abrem como um guarda-chuva e saltam para fora dos meus olhos me deixando na névoa desfocada e sem rumo.

Nesses dezessete anos, apenas uma unica vez sonhei que as lentes eram do tamanho que cabiam nos meus olhos. Eu as colocava sem problemas e voltava a enxergar: quando trabalhei como fotografa no secretariado da Marcha Global Contra o Trabalho Infantil, na India.

O psiquiatra suiço Carl Jung escreveu que a sombra designa "o outro lado" do ser humano, aquele em que vige a escuridao, tudo em nos que desconhecemos. Normalmente; destacamos a sombra negativa. Mas é preciso ter claro que existem as sombras positivas: nossos potenciais e talentos ainda nao expressados ou descobertos. Em meio a essa escuridao da vida inconsciente existemuita riqueza e sabedoria ainda nao explorados.Os sonhos, segundo Jung, sao portas para ir ao encontro das nossas sombras, positivas e negativas.

Seis anos atras, contei este sonho a um médico homeopata que me deu umas gotinhas pra que eu percebesse o que meu inconsciente estava gritando atraves deste sonho. Apesar de ser tao obvio eu ainda tinha duvidas... Duas noites depois das gotinhas, eu sonhei com um homem me explicando o sonho. Ao fotografar, eu deveria me aproximar do sujeito-objeto fotografado. Adentrar seu universo. Retirar os muros e mascaras que construi pra me proteger da dor. A Fotografia teria o poder de me fazer ver o mundo como ele é e nao como eu gostaria que fosse.

Hoje assisiti o filme "A Pele", de Steven Shainberg. Uma ficçao baseada na vida da fotografa judia americana Diane Arbus. O impacto emocional foi o mesmo do sonho que tenho ha dezessete anos.



Diane Arbus era assistente do marido, fotografo de moda. Nasceu numa familia judia rica e proprietaria de uma industria de casacos de pele em Nova Iorque. Segundo os biografos, na infancia nao conheceu a miseria, mas a mae sofria de depressao e era presa a codigos rigidos de conveniências e aparências da aristocracia. O que pode ter levado Diane a se interessar pelo "outro lado": a historia dos marginais, das prostitutas, dos deficientes fisicos, travestis e todo tipo de pessoa considerada "anormal" pela sociedade americana dos anos 50.

Assim como o principe Sidharta, na India, Diane Arbus rompeu com todos os laços da segurança, saiu dos muros aristocraticos de Upper West Side, em Nova Iorque, e teve a coragem de enxergar aqueles que ninguem queria ver. Diane ganhou prêmios e correu o mundo por fotografar pessoas nas condições mais incômodas e estranhas e por tentar ressaltar a beleza do que pode ser considerado abominável para a maior parte das pessoas. Em 1972, seu catalogo tornou-se um dos mais influentes livros de fotografia. Desde então, foi reimpresso 12 vezes e vendeu mais de 100 mil cópias. A exposição do MoMa viajou por todo o país e foi vista por 7 milhões de pessoas. No mesmo ano, Arbus tornou-se a primeira fotógrafa americana a ser escolhida para a Bienal de Veneza.

Sidharta, segundo os narradores da historia, teria alcançado a iluminaçao ao romper com tudo o que o ancorava. Diane se suicidou tomando um calhamaço de barbitúricos e cortando os pulsos aos 48 anos, em 1971, dois anos depois de se separar do marido que nao suportou suas escolhas.

Entao, fico aqui pensado com meus botoes... Qual é o limite para romper com tudo e nao se perder na trilha? Quando é que transcendemos a dor e a transformamos em luz para si e para os outros? Como entar em contato com as proprias sombras negativas sem ser engolida por elas? A dor na alma ja existe quando rompemos com o que nos ancorava e piora com tudo o que se vê diante das escolhas na sua caminhada pessoal ou ela nasce com a falta de firmeza diante das miserias humanas?


Diane com uma das filhas em auto-retrato.

No livro "Escutando Sentimentos", de Ermance Dufaux e Wanderley Oliveira, pagina 208, tem um paragrafo revelador sobre pessoas como Diane e Cazuza, por exemplo. "A tarja de obsidiados tem sido utilizada para quantos decidem por caminhos diferentes. Sao desbravadores obstinados de novas formas de caminhar, corajosos desafiantes que honram em si mesmos a diversidade. Diversidade essa que ainda nao aprendemos a respeitar. Peregrinam por outras sendas de aprendizado nas quais, possivelmente, a maioria de nos nao teria siso para trilhar. Garantem-se com suas intençoes. Sobre alguns deles, inclusive, assentam-se os mais elevados interesses do Plano Maior."

Susan Sontag, escritora americana e retratada por Diane, acusou Arbus de niilismo, total e absoluto espírito destrutivo em relação ao mundo circundante e ao próprio eu e que, exatatamente por isso, ela se escondia na dor dos marginais fotografados por ela pra nao lidar com a sua propria depressao.

Diane Arbus rebateu: " Pra mim, o sujeito da fotografia é sempre mais importante que a fotografia. Fotografei muito as pessoas "anormais", o bizarro. "Foi o primeiro tema que eu fotografei e eu tinha muito interesse por eles. Existe algo de fascinante sobre os "anormais". A maioria das pessoas segue pela vida tentando esconder suas deficiências. Os "anormais" nasceram com suas deficiências expostas. Eles passaram na prova final da vida. Eles sao verdadeiramente nobres. "

Sera que os que nasceram com suas deficiências expostas passaram na prova final da vida e sao verdadeiramente nobres? Nao creio.

Para mim, a nobreza nao esta no sofrimento, mas no que fazemos para deixar de sofrer. O caminho que Sidharta percorreu o levou à iluminação.

Essa consciência e a coragem pra ir ao encontro de suas sombras e romper com os codigos rigidos de conveniências e aparências hipocritas nao impediu Diane de se matar.

A consciência de que preciso sair do casulo em que me enfiei nao me impede de resistir às mudanças com todas as minhas forças com um imenso medo de me separar das mascaras que utilizo para amortecer a dor e de me perder na trilha, assim como Diane. Ainda sigo com medo de ver o mundo e de me enxergar. Minha maquina fotografica segue ainda escondida no armario, assim como algumas das minhas sombras.

Pra ver fotos de Diane Arbus, clique aqui.


* Patrícia Nascimento Delorme, 37, na lida com "o outro lado" do meu proprio ser e ao encontro das minhas sombras positivas e negativas.

PS: Escrevi esse texto em 2009, quando a maquina fotografica seguia escondida no armario. Em 2011, assaltantes entraram em casa e levaram a minha Canon 40D, tao sonhada. No inicio, senti uma especie de libertaçao, como se eles tivessem levado, juntamente com a camera, parte do meu eu idealizado. Depois, veio a constataçao de que as nossas  criaçoes negativas se manifestam sem piedade e certeira.

4 comentários:

  1. Anônimo6/5/09 23:01

    ola,

    Quando era adolescente me apaixonei pela foto da Susan Sontag na contracapa do Under the Sign of Satur. E motivado pela paixão devorei-a como pude: lendo quase todos os seus livros. Outro dia tentei reler alguma coisa dela - e para minha surpresa - achei o texto chato. Vendo sob o prisma dos meus quarenta anos (putain!) chego a conclusão obvia de que ela faz parte dos intelectuais de esquerda americanos amantes de Rousseau. E esses humanistas americanos - se a gente quiser alimentar nosso lado "pai do Luke" - são uns chatos! Pois são indiretamente os pais do politicamente correto. Aquela necessidade neurótica de deixar tudo limpinho.

    Acho que vem dai a leitura dela ao trabalho da Diane Arbus. Artista que eu adoro.

    Não gostei muito do filme do Steven Shainberg. Achei a pelicula muito limpinha. Com a muito limpinha Nicole... fico imaginando esse filme nas mão de um Lars Von Trier ou de um Thomas Vinterberg. Ou mesmo nas mãos do David Lynch. Enfim, o filme é até legalzinho e talvez eu é que enteje ficando {mais) chato...

    Eu percebo que a dificuldade de entrar em contato com essa sombra liga-se diretamente com a dificuldade de se entrar em contato com a morte. Talvez no teu sonho a ação de dobrar direitinho a "lente" que a ajudaria a "ver" melhor o seu mundo seja a nossa velha defesa, nossa velha proteção de deixar tudo arrumadinho, tudo limpinho. A nossa técnica polvilho antisséptico granado.

    Medo de {se) perder, ansiar de {se] ganhar...

    E como você citou o Gautama com a sua historia das quatro nobres verdades, cuja a primeira é; o mundo é ânsia; talvez possamos relacionar isso tudo. E ânsia porque? Porque não pode ser controlado. Não pode ser arrumado cem por cento ao nosso gosto. A insustentável leveza do ser... como frisou bem o Kundera. A tal da impermanência. A dança de Nataraja. Maia.

    E a negação, ou a atração, pelo "outro lado" talvez seja uma forma de se tentar negar/buscar essa resposta... que no fundo esta o tempo todo aqui. "Qual é o limite para romper com tudo e não se perder na trilha? Quando é que transcendemos a dor e a transformamos em luz para si e para os outros?" Como cavalgar a tigresa no cio? Eu não saberia dizer a sua resposta. A minha é não ter expectativas sobre nada mas tentar estar sempre ali.

    Bisou

    R

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  2. " A minha é não ter expectativas sobre nada mas tentar estar sempre ali." Agora, que também cheguei aos 40, estou tentando ir por ai. Sera que é uma coisa de idade? hahahahaha

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  3. Ótimo texto e conjecturas, Patrícia. Gostei muito. Há ali muito material para reflexão.
    Não sei o que os seus botões lhe disseram, mas creio que a "dor na alma" existe em função da nossa atitude e ações em face do que nos propomos a realizar como desenvolvimento pessoal nesta vida na terra. Ela não é essencialmente influenciada pelos outros ou por aquilo com que nos defrontamos na vida. Estes últimos podem servir para nos chamar a atenção e nos lembrar do que nos propusemos a realizar.
    Qual é o limite para romper com tudo e nao se perder na trilha?
    Creio que essa não é uma questão de "limite", mas sim de atitude. Juntamente com a coragem de romper com estruturas alienantes, é preciso haver uma atitude de aceitação (de si, dos outros e das condições que afetam a ambos). É preciso também estar consciente das implicações que essa ruptura voluntária das estruturas sociais vigentes poderá acarretar; e estar disposto a aceitar essas implicações (o "preço a pagar" pela corajosa e ousada decisão.
    Concordo em que a nobreza não está no sofrimento. Há nobreza, sim, nas formas positivas de encarar e lidar com esse sofrimento. Todo sofrimento visa nos ensinar algo positivo. É nosso nobre dever tentar compreender que ensinamento é esse e colocá-lo em prática. Essa é a cura para a dor da alma.
    Gustavo Monteiro

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  4. Anônimo4/9/12 18:52

    Oi Patricia Nascimento Delorme, gostei muito do texto. perguntas precisas, exatas, verdadeiras. Também gosto muito de "Janela da Alma", tentei distribuí-lo na Europa em 2003, além disso iria participar de um projeto de mostras de cinema para deficientes. O círculo sempre se fecha, suas perguntas, abrem portas. Obrigada! Cejana Di Guimarães

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