Toró nr. 22. Caiena-Guiana Francesa, 21 de junho de 2008. Estação da chuva. Continua chovendo... 27 °C
Eu é um outro
Essa brincadeira o levou para um exílio longínquo e eterno. Voltando ao Brasil, já não reconhecia sua própria casa
Ele sempre gostou de sonhar ser uma outra pessoa, vivendo uma outra vida em outro lugar que não fosse o seu. Essa outra pessoa por ele imaginada, por poder do sonho, era uma pessoa de verdade – por isso, também ficava sonhando ser outro alguém, que por sua vez sonhava ser ainda outro alguém... e a coisa ia se propagando numa seqüência infinita de sonhos e sonhadores. Essa brincadeira o levou para um exílio longínquo e eterno. Voltando ao Brasil, já não reconhecia sua própria casa. Evitava rostos conhecidos nas ruas de São Paulo, querendo a todo custo negar as evidências de que o tempo passara e que no fundo ele não tinha ido a lugar algum – ficara só ali mesmo onde estava, sonhando com ir, temendo ficar, indo pela metade, fugindo totalmente e ficando até morrer, nem sabia mais onde. Cada vez que ia à sua terra, voltava inspirado. Doía muito notar como Sergio Chapelin tinha envelhecido e estava com o rosto cheio de rugas. Sentiu uma profunda nostalgia ao ver que mudaram as embalagens do chocolate Diamante Negro e inventaram pizzas cujos nomes não entendia (Massarico, JK, Catu-Fran etc.). Recentemente, tinha pirado com a febre de petit gateau quente com sorvete de baunilha e ficou tentando entender por que razão, nesse exato momento histórico, teriam cismado com o petit gateau. Notou tambeém, com muito tesão, como muitas empregadas domésticas agora tinham piercing e tatuagem – gostava de uma gutcha... O Brasil não parava de mudar. Mas o movimento contínuo é estagnante – nega a essência do próprio movimento. Como sempre, só o nível petit gateau mudava no país. Eis o perene Brasilzão do futuro atolado no destino da monocultura da cana-de-açúcar, no sangue e suor dos escravos, cada vez mais podre e idêntico a si mesmo. Eis o país acomodado na brutalidade, fingindo-se chocar-se com ela. Sem ironia, o Brasil era um país muito moderno. Não conseguia voltar nem ficar longe; se cansava de querer muito e repudiar muito ao mesmo tempo, nunca tendo superado o trauma de ter passado mais da metade da vida fora do Brasil – lugar com o qual sonhava todos os dias, mas onde já não podia mais viver. Ainda hoje, está onde sempre esteve – num dos sonhos, sendo outro alguém em outros lugares. E, antes de ir para o trabalho, se vê todos os dias acendendo uma vela para sua santa padroeira, Carmen Miranda. Pede a ela que lhe dê um pouco de sua luz e graça. E, no meio do trânsito em Boston, Tóquio ou Londres, chora muito ouvindo Zezé de Camargo e Luciano se despedindo da mãe em Minas ou Goiás.
* Henrique Goldman, 45, cineasta, está exilado há quase duas décadas em Londres. Seu e-mail: hgoldman@trip.com.br
Escolhi reproduzir este texto do Henrique Goldman porque eu não poderia escrever nada melhor que isso para expressar a minha relação com o Brasil depois do meu auto-exílio de quatro anos na Europa e India.
* Patricia Nascimento Delorme, jornalista e mãe do Luka, está exilada há quase seis meses na Guiana Francesa sem data pra retornar ao Brasil. Seu e-mail: patienascimento@hotmail.com
Eu é um outro
Essa brincadeira o levou para um exílio longínquo e eterno. Voltando ao Brasil, já não reconhecia sua própria casa
Ele sempre gostou de sonhar ser uma outra pessoa, vivendo uma outra vida em outro lugar que não fosse o seu. Essa outra pessoa por ele imaginada, por poder do sonho, era uma pessoa de verdade – por isso, também ficava sonhando ser outro alguém, que por sua vez sonhava ser ainda outro alguém... e a coisa ia se propagando numa seqüência infinita de sonhos e sonhadores. Essa brincadeira o levou para um exílio longínquo e eterno. Voltando ao Brasil, já não reconhecia sua própria casa. Evitava rostos conhecidos nas ruas de São Paulo, querendo a todo custo negar as evidências de que o tempo passara e que no fundo ele não tinha ido a lugar algum – ficara só ali mesmo onde estava, sonhando com ir, temendo ficar, indo pela metade, fugindo totalmente e ficando até morrer, nem sabia mais onde. Cada vez que ia à sua terra, voltava inspirado. Doía muito notar como Sergio Chapelin tinha envelhecido e estava com o rosto cheio de rugas. Sentiu uma profunda nostalgia ao ver que mudaram as embalagens do chocolate Diamante Negro e inventaram pizzas cujos nomes não entendia (Massarico, JK, Catu-Fran etc.). Recentemente, tinha pirado com a febre de petit gateau quente com sorvete de baunilha e ficou tentando entender por que razão, nesse exato momento histórico, teriam cismado com o petit gateau. Notou tambeém, com muito tesão, como muitas empregadas domésticas agora tinham piercing e tatuagem – gostava de uma gutcha... O Brasil não parava de mudar. Mas o movimento contínuo é estagnante – nega a essência do próprio movimento. Como sempre, só o nível petit gateau mudava no país. Eis o perene Brasilzão do futuro atolado no destino da monocultura da cana-de-açúcar, no sangue e suor dos escravos, cada vez mais podre e idêntico a si mesmo. Eis o país acomodado na brutalidade, fingindo-se chocar-se com ela. Sem ironia, o Brasil era um país muito moderno. Não conseguia voltar nem ficar longe; se cansava de querer muito e repudiar muito ao mesmo tempo, nunca tendo superado o trauma de ter passado mais da metade da vida fora do Brasil – lugar com o qual sonhava todos os dias, mas onde já não podia mais viver. Ainda hoje, está onde sempre esteve – num dos sonhos, sendo outro alguém em outros lugares. E, antes de ir para o trabalho, se vê todos os dias acendendo uma vela para sua santa padroeira, Carmen Miranda. Pede a ela que lhe dê um pouco de sua luz e graça. E, no meio do trânsito em Boston, Tóquio ou Londres, chora muito ouvindo Zezé de Camargo e Luciano se despedindo da mãe em Minas ou Goiás.
* Henrique Goldman, 45, cineasta, está exilado há quase duas décadas em Londres. Seu e-mail: hgoldman@trip.com.br
Escolhi reproduzir este texto do Henrique Goldman porque eu não poderia escrever nada melhor que isso para expressar a minha relação com o Brasil depois do meu auto-exílio de quatro anos na Europa e India.
* Patricia Nascimento Delorme, jornalista e mãe do Luka, está exilada há quase seis meses na Guiana Francesa sem data pra retornar ao Brasil. Seu e-mail: patienascimento@hotmail.com
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